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Deus perdoa, eu não.

Vai rápido na sua lambreta, sem medo de nada, não há perigo que assuste Amilcar, cresceu a trabalhar pedra e o mármore faz de um homem um duro. A pressa que o leva é o amor ao seu Benfica, tem de chegar ao Preto & Branco antes que o jogo inicie. De Pêro Pinheiro ao Algueirão Velho ainda é um esticão, mas ali no P&B sempre há as gajas para comemorar a vitória.
Finalmente chega ao seu destino, desmonta da Zundap sem perder a pose, sai calmo, tira o capacete naquele gesto que o caracteriza, puxa o escarro do pó que carrega nos pulmões, lança com desprezo para o chão aquela morte que vem dentro dele por nunca usar a máscara, pois isso não é coisa de homem.
Entra no P&B, para trás deixa a moto que no depósito tem escrito a frase que tudo diz sobre ele: “Deus Perdoa, eu não.”
O jogo começa, pede cerveja, uma a seguir à outra entremeada de 1920, pois vai ser um dia de festa e Amilcar não quer perder nem um segundo.
O jogo vai correndo, a cerveja embriagando e o ânimo crescendo. Já eufórico, Amilcar grita pelo seu clube como se estivesse no estádio, vive aquele momento com intensidade enquanto olha para a Maria, que sentada na mesa do patrão já assedia clientes, escolhe o mais embriagado por ser mais fácil sacar dinheiro, mas vai dando um olhar aos outros, pois nunca se sabe. Amilcar já só pensa na festa no final, vai se impôr e vai buscar a Maria, porque com a fama que tem, ninguém se atreve a atravessar no caminho, e para a Maria já é cliente antigo e por isso não há nega que lhe calhe.
O Benfica está em dia mau, mas no fim vai sem dúvidas ganhar e isso é o que interessa. Venha mais cerveja, que o pó teima em não lhe sair da garganta.
De um momento para o outro, vem o desaire inesperado, o União faz um contra-ataque e marca. É o fim da alegria, o dia amargura, a festa acaba. Só houve ao fundo do balcão uma voz que diz: “Estavam mesmo a pedi-las!”.
Furioso, olha para o lado, para ver quem foi o parvo que falou. Tinha que ser o raio do velho. Sempre odiara aquele gajo calado, que não se metia com ninguém e só bebia uns copitos antes de ir trabalhar para a padaria. Aquele velho estúpido tinha de ser do Sporting, a raiva cresce e sente vontade de descarregar a desilusão do seu Benfica, o fim da festa, a noite com a Maria que já não vai acontecer, porque o Benfica está a perder. Não, Amilcar não é homem de levar insultos ao seu clube para casa, e o raio do velho estava ali há meses calado e, logo agora, é que tinha de abrir a boca. A fúria e o álcool, que lhe toldavam o cérebro, fazem com que se vire para o velho e o insulte, provoca-o cheio de certeza, porque se não há gaja no final da noite, alguém tem de pagar por isso. O pobre padeiro finge que não é com ele, não é homem de violências, a sua vida é, há mais de 30 anos, passar a noite a amassar pão, dormir e tratar da mulher acamada e, ao final do dia, passar por ali para o mata-bicho antes de ir trabalhar, ele não faz mal a uma mosca e não gosta de confusão, resolve ignorar para ver se passa.
Amilcar não se fica, a porra do velho está mas é a desprezá-lo ao não responder, pega na garrafa de Sagres e começa a atravessar o café em direção ao Padeiro. O patrão ainda o tenta acalmar, mas acovarda-se perante um olhar de fúria lançado por um Amilcar bêbado. Enquanto anda, larga mais uns insultos, está decidido a rachar a cabeça ao velho padeiro com a sua garrafa, não é a primeira vez que o faz e sabe que é facil e eficiente, não há maneira mais rápida de deixar um gajo no chão.
A única coisa que Amilcar não sabe é que, hoje, Deus decidiu não lhe perdoar. Quando puxa o padeiro pelo ombro, para lhe acertar em cheio na cabeça, desencadeia a fúria do pobre homem. Sem saber porquê, ao padeiro vêm à cabeça imagens da Guiné, onde esteve nos Paras, é a violência que ele odeia que lhe traz à memória tal coisa, e sem sequer abrir a boca, atira a mão forte de amassar pão à cara de Amilcar. Amilcar nem se chega a aperceber do que lhe aconteceu, cai redondo no chão, daquele dia guardará para sempre a falta de dentes na boca e a vergonha de ter sido derrubado por um velho padeiro com 70 anos. Desmaiado, não chegará a ver a vitória do seu Benfica. Quanto ao padeiro, paga a conta e vai para a padaria ouvir o resto do relato, e só com a vitória do seu clube, que afinal era o Benfica, é que acabará por esquecer o que o lhe estragou a noite, que só queria que fosse calma.

Comments

Humor Negro said…
Conclusão: O Padeiro espanca sempre duas vezes.
Especialmente quando confrontado com a estupidês humana.
Anonymous said…
Dislexico, também conheço uma história muito gira, mas mesmo muito engraçada,(até me estou a rir) de uma senhora que fugiu de casa porque levava pancada do marido ... e quando ia a fugir foi atropelada por uma prima que não via há mais de 20 anos. A prima que a levou ao hospital e que ficou com ela naqueles momentos dificeis decidiu que uma vez que lá estava o melhor era aproveitar para mudar de sexo. Aí também conheceu o marido da prima que arrependido decidiu ir pedir perdao à mulher porque finalmente tinha visto o quanto gostava dela. Mas ironia do destino, acaba por apaixonar-se por o novo primo que a mulher lhe apresenta e que agora se chama Arnaldo. Actualmente vivem os tres muito felizes na Brandoa. Se gostaste, tenho mais.
Vai mas é escrever livros! É isso que era suposto andares a fazer.
Anonymous said…
E tu? Era suposto estares a fazer o quê?
O Problema é que não faço a minima ideia e ninguem aqui me sabe dizer.
Anonymous said…
Acredito, dislexico, acredito.
Humor Negro said…
Este berloque está um relaxe do piorio. Já parece Portugal no seu melhor.
molija said…
Caro disléxico anônimos, também sou dis..co e tenho um blog: www.eudisléxico e o resto é igual ao teu. Agredeço um link, e aviso que vou colacar um link para o teu, no meu!

Abraço!

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