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Cabessundo.

Havia em Africa uma pequena tribo antiga chamada Pirunda. Fazia parte de uma grande nação Africana, que estava disseminada por quase todo o Continente.
Essa pequena tribo, que na realidade não tinha grande importancia para a nação a que pertencia, povoava um deserto pouco produtivo e seco mas batia-se brávamente pelo território com as tribos vizinhas. Ela era controlada por um soba capaz, que lutava com força pela tribo.
No entanto, chegou um dia à tribo, um feiticeiro charlatão de nome Cabessundo, enviado por um dos sobas superiores da nação, para assumir o comando da tribo. Essa decisão não foi tomada por fé nesse novo líder, mas sim porque o feiticeiro ameaçara com um mau olhado o soba superior, se este não lhe arranjasse uma tribo para comandar, e ele como era velho e vivia aterrorizado com a morte, enviou-o para a tribo mais afastada que lhe ocorreu.
Com a chegada desse feiticeiro, o soba da pequena tribo pensou ainda durante uns tempos que seria capaz de aguentar a tribo unificada, sem problemas, mas aos poucos a situação foi-se degradando, porque o feiticeiro acreditava que a melhor maneira de demonstrar o seu poder, visto que nada sabia de comando da tribo nem dos afazeres da mesma, era demontrar a sua magia e como na realidade ele não tinha magia nenhuma, recorreu-se da superstição para causar o medo e começou a exigir sacrifícios, porque o sangue é a melhor forma de causar o pânico.
Começou por mandar matar as peças de gado que a tribo possuia. A tribo obedeceu, porque ninguem podia pôr em causa um feiticeiro enviado pelo soba superior. Mas a tribo não ganhou com isso respeito a Cabessundo, porque estavam abituados a ser comandados pelo seu soba, e esse sim merecia respeito porque sabia das necessidades da tribo e de como as resolver.
O charlatão feiticeiro apercebia-se que não estava a conseguir reforçar a sua posição dentro da tribo. Isso enfurecia-o e começou a maltratar as pessoas, berrava estéricamente e ameaçava com feitiços negros os que o olhavam com desdem. Mas os membros da tribo não eram particularmente muito superticiosos, estavam habituados à agrura do deserto e ás maldições não lhes causavam terror, embora lhes incomodasse um pouco ouvirem sempre Cabessundo a gritar. O soba da tribo ia mantendo a tribo a funcionar e embora cada vez houvesse menos gado e aquele que havia fosse o mais raquítico, pois para os sacrificíos era usado o maior, a tribo continuava unida embora cada vez mais pobre sempre tinha um soba que ia mediando os conflitos e obrigando todos a trabalhar ao mesmo rítmo. O feiticeiro começou a desesperar e foi-se tornando mais e mais agressivo e sanguinolento.
A tribo foi emagrecendo e começaram a sentir-se as carências. O soba, desperado por não poder contrariar o feiticeiro e não aguentando a miséria em que se estava a tornar a tribo, abandonou-a e partiu á procura de um outro destino que não aquele que se adivinhava já.
O feiticeiro enalteceu-se, sem o soba para lhe fazer sombra certamente seria respeitado. E na verdade começou por ser, não respeitado, mas bajolado pelos membros da tribo mais fracos e cobardes. Sentindo finalmente algum apoio, começou a interferir em todas as decisões tomadas na tribo. Como não percebia nada do comando da tribo e todas as suas decisões eram erradas, a tribo começou a ficar cada vez mais pobre. No meio da tribo, começaram a aparecer os oportunistas que na falta de lógica do novo chefe descobriram espaço para só fazerem os trabalhos faceis. Os mais fortes começaram a marcar posição em relação aos outros, e as relações dentro da tribo tornaram-se difíceis. A falta de capacidade de chefia foi fazendo com que na tribo começasse a aparecer fome e com a fome, mesmo aqueles que no princípio por medo adolavam Cabessundo, começaram a perder-lhe o respeito.
Cabessundo, sentiu a animozidade da tribo, mas nada sabia que pudesse resolver os problemas da tribo e com medo da revolta virou-se de novo para a feitiçaria. Juntou a tribo na cubata grande, põs palhas e folhas a fumar, iniciou cânticos e ali ficaram a jejuar ao som dos batuques até entrarem todos em transe. Quando estavam todos nesse estado de semi-dormência, e com a sensação de trancendência causada pela fome e pela cadência repetitiva dos batuques, o Cabessundo iniciou a sua farsa, sacrificou um dos ultímos animais que restavam, fez o seu sangue espirrar sobre as pessoas e em seguida sangrou o que restava em folhas secas, que incendiou causando um fumo quase sofocante. Entuou gritos e danças, as crianças assustadas deram início a um choro que rapidamente passou a todos os membros da vítimas. O Feiticeiro alimentou o choro das pessoas com a narrativa das desgraças que íam caindo em cima da tribo, falou da seca que assulava aquela região numa tentativa de lançar para ela as culpas que eram suas. Depois falou da fome que iria destruir os Pirundas. Depois disso acrescentou o golpe máximo da sua burla, começou a falar numa lingua que os outros desconheciam e que ele tinha aprendido com os comerciantes Arabes da costa de onde ele era oriundo.
Falou no seu Islâmico que ninguem percebia durante um tempo sem fim, as pessoas foram sossegando enquanto tentavam perceber o que dizia, a curiosidade foi-se formando e a dada altura os Pirundas começaram a repetir alguns dos seus ditos.
Foi-se formando um coro. Cabessundo começou a aumentar a cadencia dos tambores e a gritar cada vez mais. As vozes acompanhavam-no a um ritmo mais e mais forte, e quando as vozes já estavam no seu máximo o Feiticeiro burlão viu que era chegado o momento. No meio do fumo ergue-se, dá um grito e fingiu desmaiar. Caído no chão, foi cercado por todos os membros da tribo que, sem o conseguir acordar do seu fingido transe, acabaram para o levar para a sua cobata e aí o deixaram descansar.
Enquanto Cabessundo, auxiliado por umas raízes que lhe causavam febres e suores, fingia um transe irrequieto, fora da sua cubata a tribo perguntava o que se passara. Finalmente o Feiticeiro tinha conseguido que a tribo começasse a acreditar em supertição e agora bastava-lhe arranjar uma solução para o problema da tribo.
Ficou dois dias assim, fechado na sua cubata a pensar no que poderia fazer. A tribo estava perigosa pois ele sabia que mesmo com a suprestição a fome poderia falar mais alto e os mais fortes poderiam revoltar-se, e foi então na sequência desse raciocínio que ele elaborou o seu ardiloso plano. A ideia era simples, se os animais eram poucos e a fome aparecia por isso e se a sua maior ameaça eram os mais fortes da tribo, acabaria com os dois problemas de uma vez só.
Fingiu acordar do seu transe, ainda combalido reuniu de novo a tribo e num tom que imitava tristeza, explicou à tribo o que se passara. Numa mentira vil disse que aquela língua que ele usara era a língua dos Deuses que ele só conseguia pornunciar através das suas artes mágicas e que por meio dessa lingua Quirunda. a mãe terra a mais importante dos Deuses, tinha com ele falado sobre o futuro, ai fingiu um choro, e lamentando a maldição que caíra sobre os Pirundas disse que estariam todos condenados ao fim, caso não fossem feitos mais sacrifícios. O pânico intaurou-se no meio daquele povo, porque os animais eram poucos e por isso estariam todos condenados, mas aí o cruel Cabessundo lançou o golpe final do seu plano, com a voz sofrida anunciou que os sacrificios que Quirunda exigia não eram de animais mas sim humanos.
Assim estava lançado o ardil, as pessoas da tribo no seu desespero e agarrados à superstição que agora as comandava acataram os desígnios da poderosa Deusa, e os sacrifícios iniciaram-se. Cabessundo era a voz que elegia os sacrificaveis porque as suas palavras eram as da Deusa e assim foi eliminando um a um aqueles que considerava os mais perigosos por serem os mais fortes e os maiores candidatos a soba. Em torno dele, começaram a juntar-se os mais cobardes, que no medo de serem eleitos para a matança iam aulando-o e obedecendo sem questionar. O Feiticeiro sentiu o seu poder reforçado pelo sangue que corria, e deixou-se levar enebriado até já ninguém forte restar na tribo.
Agora, mais que um Feiticeiro, sentia-se um grande soba. Todos os que o rodeavam tremiam perante ele e na sua segueira confundia medo com respeito. Em torno de si, os bajuladores que conseguiam fazer parte do seu círculo mais próximo e que mesmo maltratados por ele lhe prestavam servilismo, iam sendo alimentados pelos animais que restavam, os outros pouco tinham e serviam apenas para mais tarde ou mais cedo serem sacrificados de forma a alimentar o terror que lhe dava a força.
Aos poucos e devido ao esbanjamento feito por Cabessundo e os servis aproveitadores, a tribo foi enfraquecendo até se tornar notório às tribos que a rodeavam que assim era. Essas tribos, começaram então aos poucos a roubarem o território dos Pirundas que sem os seus homens fortes ou uma boa chefia para os defender, foram exilados cada vez mais para o meio do deserto onde a terra era cada vez mais seca e a água escassiava. A miséria era muita, a fome atacava cada vez mais, e a única maneira que Cabessundo tinha de continuar a dominar era exigir cada vez mais sacrifícios, que enfraqueciam a tribo. Assim, continuou o jugo do Feiticeiro até que daquela tribo apenas restava uma mão cheia de miseraveis e famintos pirundas. A fome era cada vez maior, a tribo arrastava-se pelo deserto e os homens lutavam famintos por pequenas raízes que conseguiam, de quando em quanto encontrar porque os pequenos lagartos do deserto que apareciam eram dados por medo a comer a Cabessundo. Assim foi vivendo mais uns tempos a tribo, até uma noite em que no meio da fome foi encontrado um lagarto. O Feiticeiro apossou-se dele e mandou deitar fogo a alguns dos últimos bens da tribo porque estava cansado de comer carne crua. Quando acabou de cozinhar o seu lagarto, sentou-se junto à fogueira a comê-lo deliciado. Os últimos membros vivos da tribo olhavam-no do meio das sombras, nas suas cabeças a fome agora era maior que o medo e finalmente, sem que se saiba dizer quem foi o primeiro, investiram sobre Cabessundo na esperança de ainda lhe roubar os restos do lagarto, agrediram-no com a força que o desepero lhes deu e com a violência que invade os desesperançados. Mataram-no e como do lagarto já poco restava e não era suficiente para lhes saciar a fome, acabaram por comer tambem o Feiticeiro que havia sido a sua maldição. De seguida, os Pirundas seguiram pelo deserto dentro e deles mais nada se soube, morreram à fome certamente porque como eu vos disse no início, havia uma pequena tribo em Africa. Mas agora, já não há.

Comments

Anonymous said…
moral da historia: Eles queriam mesmo era comer o feiticeiro.
Porra! Bate nessa boca.

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