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A primeira vez.

Recordo-me de uma conversa, teria eu os meus 9 anos.
O sitio era a minha sala de aulas, encontrava-me sentado naquela pequena e velha secretária de madeira, daquelas com banco incorporado e sitio para meter o tinteiro e uma concavidade para os lapis. Penço que estaria a desenhar, enquanto ouvia. Na sala ao lado, a do piano, a Dona Maria Aurelina dizia com uma vós ponderada á minha mãe: “- Sabe, o menino não é burro… e ele está muito bem nas contas, na Historia, mas na escrita, não sei! Nunca vi nada assim!”, a Minha mãe respondia calmamente que ela e o meu pai tambem já tinhão detetado o problema, e que inclusivé eu já tinha uma consulta marcada numa Psicologa.
Bem, pelo menos não sou burro. Mas será que sou louco?
Quando dei por min, estava sentado, noutra secretária,mas desta vez na univercidade de medicina de Lisboa, á minha frente queestionários e desenhos. Foram dois dias de, perguntas do tipo o que é que quer dizer a sigla GNR, ao que eu em panico respondia com medo de afinal ser burro, “Guarda Nacional Republicana,ou será, Grupo novo de roque?”, depois vinhão os desenhos com formas abstratas que eu era suposto encaichar, e que quando eu dava a resposta do outro lado vinha um: “-Hum… e este?…” completamente seco, tipico de uma pessoa que já teria feito aquilo aproximadamente 100 000 vezes.
Confeço que o meu problema, do qual eu não conhecia a existencia até uns dias antes estava a começar a pesar. Afinal em primeiro lugar eu tinha um problema, coisa a que não estava minimamente habituado visto ser o filho mais novo, e mimado. Em segundo lugar toda esta conversa começava a soar mal, que porra é que a GNR e estes desenhos têm a ver com a minha letra ser orrivel, e eu não saber onde raio é que arrumo as letras e já agora quais é que elas são.
Passaram os dois dias, que visto que nem tiveram recreio, pareceram nunca acabar, e finalmente veio a resposta. Eu estava sentado numa sala de espera quando os meus pais sairam com aquela cara só uzavam quando eu fazia asneira, e me disserão para entrar pois a Senhora Doutora queria falar comigo. Entrei, logo a dizer o meu melhor bom dia, achei que assim a descasca seria menor, só pençava, “tens de deixar de ser tão distraido, afinal de contas era aquilo de que me acusavam á anos e anos.”
Sentei-me o mais confortavel que pude naquele cadeirão enorme, sentia-me meio perdido naquela imensidão de napa.
A Psicologa, finalmente, levantou a cabeça dos resultados dos meus testes, respirou fundo como que a ganhar coragem e disse o veredito começando pelos paninhos quentes e acabando com balde de água fria:
“- Bem você é uma criança com um QI acima da media, quero dizer, você é muito inteligente!”.
Nesse momento foi a gloria, tinha passado nos testes e as minhas notas eram boas, mas logo de seguida veio o chofre:
“- Mas no entanto você tem um pequeno problema. Você é Disléxico.”.
Ao que eu pensei Dis-quê? O que é que ela quer que eu diga? E ela continuou no seu discurso:
“- Não é nada de grave, com o devido acompanhamento… No fundo você só tem que perceber que o seu lobolo frontal esquerdo, foi atrofiado, ou seja uma parte do seu cerebro não se desenvolveu, provavelmente devido a um maior desenvolvimento de outra zona.”.
Ainda hoje me pergunto que raio de zona é essa, e para que é que ela serve, mas na altura foi um pensamento reconfortante, saber que o espaço dentro da minha cabeça afinal não se encontrava simplesmente vazio. A Psicologa disse por fim o que me interressava saber, o que é que eu tinha de errado:
“- Esse lobulo cerebral, é o responsavel pela escrita, quero eu dizer, que você tem uma defeciencia a esse nivel mas com o tempo pode melhorar bastante.”
Bem, podia-me ter dito alguma coisa que eu já não soubesse, pois nessa altura ainda estavão vivas, na memoria, as reguadadas da Dona Arrelete, a minha ex-professora da segunda classe. Mas pronto, ficava a saber que ao menos nem era burro nem maluco, e que os Psicologos serviam para mais alguma coisa do que tratar de doidos.
De seguida ela passou-me aquele atestado que me iria acompanhar anos e anos na escola, e eu sai para ir ter com os meus Pais que me encheram de mimos, e que eu ouvir dizer já no carro, quando pençavão que eu já estava a dormir:
“- Coitado do miudo!… Vai ser um problema! … Mas tudo se resolve!…”
Frase que me habituei ao longo dos anos a ouvir da bouca do meu pai, mesmo em relação a problemas muito maiores, do que aquele que eu estava a passar.
Depois de tantos testes, e graças ao atestado médido que se tornou um companheiro de vida nos anos procedentes, os exames de 4ª classe foram uma brincadeira de meninos e até tive boas notas. As unicas coisas que eu até hoje me pergunto é para que é que é tão importante escrever. E Já agora porque é que levaram tantos anos a inventar um corrector ortografico. E tambem como é que aqueles desenhos abstratos encaixavam realmente.
Quanto a este meu problema, aprendi com o tempo a relativizá-lo, afinal de contas, poderia ter sido muito pior, poderia ter sido um atrofio do complexo reptiliano que me cauzasse uma disfunção sexual. E isso, sim, seria grave.

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